Sem memória não há aprendizagem
*Valéria Tiusso Segre
Ferreira|
Durante séculos, na escola, memorizar foi
sinônimo de decorar nomes, datas e fórmulas. Afinal, eram esses os conhecimentos
sempre exigidos nas provas, nas chamadas e nos testes. Com base nos estudos
sobre o processo de aprendizagem da criança, concluiu-se que a decoreba era
inimiga da educação. E a memória — confundida com repetição — foi posta de
castigo.
Um grande erro. A memória é a base de todo o
saber — e, por que não dizer, de toda a existência humana, desde o nascimento.
Como tal, deve ser trabalhada e estimulada. "É ela que dá significado ao
cotidiano e nos permite acumular experiências para utilizar durante toda a
vida", afirma a psicóloga e antropóloga Elvira Souza Lima, especialista em
desenvolvimento humano.
Nos últimos 20 anos, a neurociência avançou muito
nas descobertas sobre o funcionamento do cérebro. Hoje sabe-se o que acontece
quando ele está captando, analisando e transformando estímulos em conhecimento e
o que ocorre nas células nervosas quando elas são
requisitadas a se lembrar
do que já foi aprendido. "Com isso o professor pode aprimorar suas estratégias
de ensino", diz o neuropsiquiatra Everton Sougey, coordenador do curso de
pós-graduação em Neuropsicologia da Universidade Federal de Pernambuco. Estão
provadas, por exemplo, as vantagens de estabelecer ligações com o conhecimento
prévio do aluno ao introduzir um novo assunto e de trabalhar também a emoção em
sala de aula. O cérebro responde positivamente a essas situações, ajudando a
fixar não somente fatos, mas também conceitos e procedimentos.
"Somos aquilo que recordamos", conceitua
Iván Izquierdo, professor de Neuroquímica da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. Ele dá umexemplo: nenhum texto é compreendido se
não se lembra o significado daspalavras e a estrutura do idioma utilizado. Tudo
isso precisa estar registrado no cérebro para ser resgatado no momento oportuno.
A memória, enfatiza Elvira Lima, é a reprodução mental das experiências captadas
pelo corpo por meio dos movimentos e dos sentidos. Essas
representações são evocadas na hora de executar atividades,
tomar decisões e resolver problemas, na escola e na
vida.
O valor do conhecimento
prévio
Quando assiste aula, o estudante recebe
informações de todo tipo, tanto visuais como auditivas. Elas se transformam em
estímulos para o
cérebro e circulam pelo córtex cerebral antes de serem
arquivadas ou descartadas . Sempre que encontram um arquivo já formado (o tal
conhecimento prévio) arrumam um "gancho" para o seu armazenamento, fazendo com
que no futuro ela seja resgatada mais facilmente.
"É como se o recém-chegado fosse morar em uma
nova casa, mas em rua conhecida", ilustra Elvira Lima. Quando essa informação é
resgatada da memória, trilha os mais variados caminhos.
Se eles já tiverem sido percorridos
anteriormente, a recuperação de conhecimentos será simples e rápida. O que não
tem nada a ver com
decoreba.
"Se o estudante não aprende um conteúdo é porque
não encontrou nenhuma referência nos arquivos já formados para abrigar a nova
informação e, com isso, a aprendizagem não ocorreu . Não adianta insistir no
mesmo tipo de explicação", ressalta a neuropsicóloga Leila Vasconcelos, da
Universidade Federal de Pernambuco. Cabe ao professor oferecer outras conexões.
Como? Usando abordagens diferentes e estimulando outros sentidos. Daí a
importância de investigar os conhecimentos prévios da turma, recordar conteúdos
de aulas anteriores, para formar os "ganchos", e dispor de diferentes
estratégias de ensino.
Criando elaborações mentais
O cérebro funciona em módulos cooperativos, que
se ajudam na hora de recuperar informações. Quanto mais caminhos levarem a elas,
mais fácil será o "resgate". Exemplo: se um conceito estiver conectado
simultaneamente a uma imagem e a um som, pelo menos três áreas
diferentes do
cérebro trabalharão para recuperá-lo. Por isso, inventar uma imagem simbólica —
associar conceitos a formas, palavras a sons, cores a significados e assim por
diante — é um hábito extremamente saudável. "Sair do concreto faz com que
determinada informação seja guardada sob várias chaves, como se fossem fichas de
armazenamento, facilitando a consulta", destaca Jiitka Soskova, psicóloga checa
especialista em inteligência artificial. As fórmulas mnemônicas (criação de
letra para música conhecida, versinhos rimados, frases engraçadas) são outros
exemplos de associações que levam à memorização. Ofereça esses mecanismos e
estimule cada aluno a criar as próprias associações para os conteúdos que devem
ser armazenados.
O papel da emoção
Os sentimentos regulam e estimulam a formação e a
evocação de memórias. São eles que provocam a produção e a interação de
hormônios, fazendo com que os estímulos nervosos circulem mais nos neurônios.
Graças a esse fenômeno cerebral é mais fácil para uma criança lembrar-se do
processo de fotossíntese se ligar esse conteúdo de Ciências a uma planta que tem
em casa ou à árvore em que costuma subir quando está em férias na casa da
vovó.
Memória inconsciente
Algumas lembranças ficam "escondidas" porque
estamos expostos a mais informações do que conseguimos guardar. Aparentemente
perdidas, elas ficam num lugar do cérebro chamado inconsciente. Ninguém sabe
explicar exatamente por que, mas elas voltam à consciência sem que o indivíduo
controle. Pesquisas mostram que isso sempre ocorre em alguma circunstância
especial, quando algum fato ou informação evoca lembranças que se julgavam
perdidas.
Esquecer para lembrar
O esquecimento (de fato) é o descarte de algo
pouco importante que só serve para sobrecarregar os mecanismos de memorização. É
fundamental no processo de aprendizagem, porque deixa o caminho livre para que
as informações e conteúdos fundamentais sejam arquivados. Uma pessoa que conhece
os conceitos de presidencialismo e parlamentarismo (importante) pode explicar a
diferença entre os dois a qualquer interlocutor em qualquer momento de sua vida,
mas provavelmente jamais se lembrará do dia em que aprendeu isso nem da roupa
que o professor usava na hora em que o assunto foi discutido em classe (pouco
importante). O cérebro jogou fora detalhes, mas o conhecimento foi arquivado e
depois conectado com outras informaões correlatas, formando novos arquivos.
Como se forma a
memória
Um arquivo organizado
O cérebro é dividido por uma fenda em dois
hemisférios, que são segmentados em lobos, regiões demarcadas sem muita nitidez.
As informações captadas pela visão, pela audição, pelo olfato, pelo paladar e
pelo tato provocam impulsos elétricos e reações químicas em lobos diferentes e
não são guardadas da maneira como foram captadas. Elas são fragmentadas,
classificadas e hierarquizadas. Para se ter uma idéia de como o cérebro se
organiza, podemos visualizar na ilustração ao lado:
1. elaborações mentais
sofisticadas, como o planejamento, o julgamento e a decisão;
2.
dados sobre movimentos corporais, tato, orientação espacial e análise
sensorial;
3. informações olfativas;
4.
linguagem, leitura e fala;
5. informações
auditivas;
6. estímulos e associações visuais.
Paulo Caramelli, especialista em neurologia
cognitiva do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, explica que
tanto novas informações quanto as já armazenadas, depois de conectadas e
reelaboradas, passam obrigatoriamente pelo hipocampo (H), estrutura que fica sob
os dois hemisférios. De lá as informações são espalhadas por toda a superfície
do cérebro, o córtex. A classificação e o armazenamento de informações são tão
específicos a ponto de, dentro do "arquivo" linguagem, uma "pasta" guardar
verbos; outra, substantivos, e assim por diante.
Mais conexões, mais memória
A informação captada transita pelos neurônios,
células nervosas semelhantes a árvores sem folhas: os galhos seriam os
dentritos; o ronco, o axônio; e as raízes, os terminais pré-sinápticos. Eles
criam emaranhados de caminhos que se orientam em diversas direções. Quando os
galhos de uma célulaencontram-se com as raízes de outra forma-se uma sinapse,
local de comunicação entre os neurônios e unidade elementar de armazenamento da
memória. Lá acontece síntese de proteínas, trocas elétricas e ativação de genes
que provocam o armazenamento da informação. Quanto mais conexões, mais memória.
Cada neurônio pode se comunicar com até outros mil. Como o ser humano tem de 10
bilhões a 100 bilhões dessas células, é possível haver até 100 trilhões de
conexões sinápticas.
Informação visual
Uma imagem, por exemplo, é captada pelos olhos e
segue pelo nervo óptico — formado por neurônios — até a parte posterior do
cérebro, chamada occipital. Ela é desmembrada em formas, cores, movimentos e
outros dados que a compõem. Dali essas informações espalham-se pelas áreas
vizinhas, à procura de outra informação correlata.
Encontrando essa referência, surge um novo
arquivo que vai para o hipocampo para depois ser armazenado no cérebro.
Uma rede bem montada
Sempre que você oferecer informações de
diferentes naturezas sobre um mesmo conteúdo, estará ajudando o aluno a formar
um aprendizado e um conhecimento que poderá durar por toda a vida. Fornecendo
imagens, sons, a possibilidade de usar o corpo em movimentos e produzindo
emoções, diversas partes do cérebro serão ativadas quando esse conteúdo precisar
ser resgatado, tornando a sua lembrança mais fácil. E ao unir esse conteúdo a um
conhecimento prévio, serão traçados vários caminhos que tornarão o aprendizado
mais eficaz.
Tipos de memória
Acredita-se existirem tantas memórias quantas
forem as experiências acumuladas e, com isso, a capacidade de armazenamento de
informações seria imensa. Aqui vamos falar apenas da capacidade geral do homem
de captar, armazenar e se lembrar de informações. Por isso, grosso modo, a
memória pode ser classificada da seguinte maneira:
1. Pela sua duração
Memória de curto
prazo
Sobrevive o tempo necessário para a informação ser utilizada.
Exemplo: qualquer conteúdo que é decorado para uma prova permanece no cérebro
até o aluno entregar o documento ao professor. Se ele tiver boa nota, talvez
nunca mais se lembre do que estudou. Não forma arquivos.
Só vira memória de
longo prazo se encontrar vínculo com outra informação já armazenada ou pela
repetição.
Memória de longo prazo
Fica
mais tempo no cérebro e é aquela que todo professor gostaria de fomentar em seus
alunos. Quando dura anos, vira memória remota.
Uma informação permanece no
cérebro porque, quando foi apreendida, seus estímulos geraram novas sinapses,
desencadearam síntese de proteínas, ativaram genes e provocaram a sua
consolidação como conhecimento apreendido.
2. Pelo seu conteúdo
Memória declarativa
A
episódica ou autobiográfica guarda os fatos vividos pelo
indivíduo, como oprimeiro encontro com a pessoa amada ou uma aula especial, em
que algo inusitado tenha acontecido (um teatrinho, show ou uma situação que
despertou algum tipo de emoção no aluno).
A semântica — a
mais importante durante o aprendizado — arquiva os conhecimentos gerais, como o
significado de palavras e conceitos.
Memória de procedimentos
É
composta pelas habilidades motoras ou sensoriais. Como andar de bicicleta ou a
maneira de proceder diante de determinadas experiências realizadas na
escola.
Muitas vezes, pela observação e pelo treinamento, esses conhecimentos
são arquivados de maneira implícita, sem que haja consciência do
aprendizado.
A memória de trabalho ou
ativa
Não se encaixa em nenhuma das categorias anteriores. É assim
chamada por analogia com a memória dos computadores. Iván Izquierdo define-a
como "gerenciadora da realidade": ela conecta as informações da memória de curto
prazo com as já arquivadas para comparar, analisar, decidir ou não abrir um novo
arquivo. Ele dá o exemplo: conservamos na consciência algumas palavras
utilizadas no início desta frase somente para compreender o significado da
sentença.
Depois esquecemos o termo exato, mas conservamos na memória a
idéia principal. É também aquela que o aluno usa ao receber suas instruções
antes de realizar uma atividade, ao recordar as orientações no momento da
execução. Essa memória usa as capacidades do córtex pré-frontal do cérebro,
lugar das chamadas funções cerebrais superiores, como a tomada de decisão, a
análise crítica, o julgamento.
Entenda o cérebro e ensine
melhor
Ao conhecer o funcionamento da memória, você pode
planejar ações para ajudar a turma a armazenar e evocar conhecimentos. Confira
algumas estratégias:
Estabelecer relações entre novos
conteúdos e aprendizados anteriores faz com que o caminho daquela informação
seja percorrido novamente (evocação), tornando mais fácil seu
reconhecimento.
Criar elaborações mentais
envolvendo recursos como sons, imagens, fantasias, significados e (por
que não?) humor permite que várias áreas do cérebro trabalhem simultaneamente no
resgate de informações e estimula a memória.
Utilizar gráficos, diagramas,
tabelas e organogramas para classificar as informações faz com que o cérebro
tenha mais facilidade para armazená-las e, portanto, resgata-as com mais
facilidade.
Reservar os últimos minutos da aula para
conversar sobre o conteúdo estudado possibilita que o novo conhecimento
percorra mais
uma vez o caminho no cérebro dos estudantes. Assim, eles fazem
uma releitura do que aprenderam.
Usar brincadeiras, dramatizações ou jogos
para levar emoção à classe favorece a aprendizagem. Isso só funciona se
houver relação entre o conteúdo e a situação lúdica.
A evolução vem com a
idade
Até os 9 meses, o bebê já tem praticamente a quantidade
definitiva de neurônios. São raras as pessoas que se lembram de fatos ocorridos
antes dos 4 anos de idade. Nos primeiros anos de vida, os dois hemisférios
cerebrais ainda não estão totalmente formados e os feixes de neurônios que fazem
a comunicação entre o lado esquerdo e o direito ainda não foram consolidados.
Nem todo mundo se desenvolve exatamente do mesmo jeito, mas pode-se dizer que,
em geral, até os 7 anos a memória visual é mais dinâmica — daí por que o desenho
deve ser bastante utilizado nessa fase. Se for bem estimulada, por volta dos 9
ou 10 anos a criança começa a usar o raciocínio abstrato — e o material
pedagógico deixa de ser tão útil na ativação da memória. Segundo Mel Levine,
pediatra e professor da Universidade da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, é
nessa idade que se constroem os padrões e as regras que permitirão reconhecer
dados semelhantes. Depois dos 13 ou 14 anos é hora de aprimorar as habilidades
matemáticas e de leitura e escrita, pois elas podem ser resgatadas da memória
automaticamente.
Nos adolescentes, a informação circula em
altíssima velocidade no cérebro — cada hemisfério sabe o que o outro guarda e
faz. A maioria dos estudantes é capaz de criar estratégias próprias para
armazenar dados, estabelecendo relações com sua vida, suas fantasias e seus
conhecimentos prévios. Por volta dos 70 anos, quando não é estimulada, a memória
pode começar a falhar em algumas pessoas.
A memória no tempo
Mnemósine foi a deusa escolhida por Zeus para ser
a mãe das musas doconhecimento: Calíope (poesia), Clio (história), Polímnia
(retórica), Euterpe(música), Terpsícore (dança), Érato (lírica coral), Melpômene
(tragédia), Tália(comédia) e Urânia (astronomia). Com os escritos de Paros,
descobertos no século 17, soube-se que o poeta grego Simônides era um
especialista em memorizar. Único sobrevivente de um desmoronamento, durante um
banquete, ele identificou os corpos das vítimas lembrando-se do local onde cada
uma estava sentada. Na Idade Média, a mnemotécnica era utilizada pelos
universitários para decorar nomes dos reis e períodos de governos.
Assim essa capacidade mental, relacionada a
repetições, foi estigmatizada como uma das barreiras para a verdadeira
aprendizagem. Nos últimos 20 anos, pesquisas apontaram a existência de vários
tipos de memória, todas elas essenciais na aquisição do conhecimento
Valéria Tiusso Segre Ferreira -
Pedagoga especialista em Psicopedagogia Clínica e Institucional. Atendimento
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